Mazey Day, de Black Mirror, se passa em 2006, momento em que a rádio noticia o nascimento da filha de Tom Cruise e Katie Holmes, Suri Cruise. O episódio se situa, portanto, antes mesmo do lançamento do primeiro iPhone, que ocorreu em 2007. Assim, temporalmente já estamos situados em um contexto em que sequer há o espelho preto típico dos smartphones que dá nome à série.
O episódio trata dos paparazzi que já fotografavam celebridades antes mesmo de pensarmos em ter uma câmera no celular disponível a qualquer momento. É a época do auge da cultura das celebridades e dos holofotes de Lindsay Lohan, Paris Hilton e Britney Spears. Como não lembrar do site Ego? Lançado em 2006 e extinto em 2017, o sítio eletrônico trazia todo tipo de detalhe sobre as vidas dos famosos.
O episódio explora, assim, o lado sombrio dos paparazzi e da fama. Logo no início conhecemos a protagonista Bo (Zazie Beetz), paparazzo que fotografa celebridades em situações escandalosas em troca de dinheiro.
A ideia de que paparazzi são perturbadores não é uma novidade no cinema. Temas correlatos são desenvolvidos no filme “O Abutre”, por exemplo, onde o personagem de Jake Gyllenhaal busca fotos de crimes e acidentes chocantes, no intuito de vender a história para veículos interessados.

Desse modo, Mazey Day é uma história sobre os possíveis perigos da relação entre as celebridades e a mídia, dissecando a obsessão, a ambiguidade moral no campo profissional e o impacto da intrusão na vida alheia, bem como a nossa responsabilidade enquanto criadores ou consumidores de conteúdo.
Conhecemos a personagem quando ela fotografa um ator gay saindo de um quarto de motel com um homem. A sexualidade do ator não era de conhecimento do público e, com o escândalo da foto, ele se suicida logo após a difusão da notícia. Bo, endividada, vive em conflito com seu trabalho, por perceber que sua profissão, além de precarizada, vem prejudicando a vida das pessoas.
Também conhecemos a personagem Mazey Day (Clara Rugaard), uma jovem atriz que está gravando um filme na Europa e luta contra o abuso de substâncias psicoativas. Após atropelar uma pessoa na Europa, Mazey retorna aos Estados Unidos e imediatamente se isola, o que desperta a curiosidade da mídia e torna suas fotografias itens valiosos. Surge a recompensa de trinta mil dólares para quem conseguir fotografar Mazey.
Apesar de não querer continuar no mundo dos paparazzi, Bo é estimulada por seu amigo a rastrear Mazey e, assim, conseguir quitar suas dívidas. A personagem descobre que Mazey está em um centro de bem-estar isolado, local onde a atriz está se recuperando do incidente traumático vivenciado na Europa durante as filmagens do filme em que atuava.
Esse rastreio não foi muito difícil, considerando as informações sobre a vida da atriz espalhadas pelos tabloides, evidenciando a dificuldade de isolamento em um mundo multiconectado.
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Quando chegam ao centro de bem-estar, os paparazzi conseguem entrar no quarto de Mazey, que está agonizando com febre e amarrada com correntes na cama. Os paparazzi ignoram a situação degradante, ativam os flashes e seguem fotografando a atriz quando, subitamente, ela se transforma em uma lobanil, a fêmea do lobisomem.
A licantropia é uma palavra que diz respeito à capacidade de um ser humano se transformar em lobo. Nesse ponto, a licantropia clínica é compreendida como uma síndrome psiquiátrica na qual a pessoa acredita estar se transformando em um animal.
Cogita-se que o desenvolvimento dessa síndrome também se relaciona com contribuições culturais que influenciam o conteúdo da psicose, eis que a história nos brinda com inúmeros contos e mitos acerca da transformação humana em animais.
Para além da história do lobisomem, temos Rômulo e Remo, o mito de Licaão e, até mesmo, a saga Crepúsculo. Alguns espectadores até fizeram uma ligação com a saga a partir da música “Supermassive Black Hole”, do Muse, que compõe a trilha sonora do episódio e toca na famosa cena de beisebol em Crepúsculo. Mas Charlie Brooker comentou que esse Cullen crossover não foi intencional.
O fato é que, o que antes era compreendido como mitologia hoje pode ser compreendido como psicose. E Mazey Day é discretamente revolucionário para Black Mirror, porque tenta trazer uma transição entre os temas classicamente abordados, como ciência e tecnologia, com uma nova pitada de surrealismo e fantasia.
Essa transição trouxe uma quebra de expectativa amada por alguns e odiada por muitos. Em que pese o desenvolvimento sobre fama, isolamento e exposição, a licantropia pode ser considerada um final exagerado para o contexto.
Observando o trailer da sexta temporada, antes do episódio Demon 79 vemos um logotipo com o nome Red Mirror, um aparente novo rótulo que o diferencia dos episódios anteriores, denotando uma ligeira mudança de foco. Charlie Brooker revelou que pensou em incluir a marca Red Mirror antes do episódio Mazey Day, mas acabou mudando de ideia e mantendo a marca Black Mirror.

Muitos fãs da série ficaram insatisfeitos com o episódio. Isso porque Black Mirror tradicionalmente nos faz refletir sobre o mundo real, trazendo aspectos de um presente e de um futuro assustadoramente familiares.
A inclusão de um passado e de um elemento de mitologia na história fez com que muita gente ficasse insatisfeita, especialmente pela quebra da expectativa, mudança de abordagem e tom de desorientação narrativa. Essa crítica é compreensível porque, de fato, há momentos em que o roteiro não se preocupa em dar profundidade ou personalidade aos personagens.
Alguns diálogos, inclusive, tentam excessivamente gritar a essência da história: “você só estava fazendo o seu trabalho”, “você precisa de isolamento”, “isso é jornalismo legítimo”, “isso é roubo de informação”, “maldita cerca de privacidade”. Também ouvi críticas no sentido de que o episódio não traz nenhum indicativo da aparição animalesca. Mas alguns diálogos também são indicativos sutis desse final, em que pese a legenda brasileira nem sempre tenha feito a tradução mais adequada.
O ator que Bo fotografa no início do episódio diz “você está me matando!” e a chama de “fucking animal” quando ela se afasta. As paredes do clube em que uma celebridade chega e é assediada por vários paparazzi têm pegadas de cachorro. Quando o Dr. Babich diz que Mazey deverá se isolar para se curar, ele informa que ela precisa conseguir passar por “esta noite”, sugerindo algum tipo de ritual.
Sobre a mudança de tom em Black Mirror, Charlie Brooker revelou que sempre sentiu que a série deveria ter histórias diferentes umas das outras, que continuassem a surpreender as pessoas. Revelou, ainda, seu intuito de que a série fosse difícil de definir e que seguisse se reinventando. Então, como um desafio e como uma forma de manter as coisas revigorantes, o roteirista iniciou essa temporada descartando suas próprias suposições sobre o que esperar.
E não há nada de tremendamente errado nisso. O episódio tem um ritmo rápido e algumas cenas nostálgicas dos anos 2000, trazendo um desempenho essencialmente regular, sem deixar muito tempo para que o espectador reflita ou questione o que está acontecendo. E a discussão acerca da privacidade e da mídia está vivíssima no episódio. Sim, isso ainda é muito Black Mirror.

Uma olhada em retrospecto nos lembra o primeiro episódio da série, The National Anthem, que foi ambientado em uma Grã-Bretanha não futurista e que trouxe a história de um homem sequestrando uma princesa e utilizando a mídia para chantagear o primeiro-ministro, mais uma vez evidenciando a relação dos meios de comunicação.
Esquecemos também que as tecnologias são, em linhas gerais, uma forma de transformação dos objetos e do meio ambiente pelo ser humano. Assim, as câmeras fotográficas, ainda que não possam ser consideradas tecnologias essencialmente novas, são consideradas tecnologias e, portanto, se enquadram na discussão da série.
O episódio também tem a grande sacada de nos levar a refletir sobre a ascensão do mundo das subcelebridades e dos influencers, onde há exposição voluntária e gratuita de diversos detalhes da vida íntima e pessoal no Instagram.
O mundo contemporâneo nos escancara que os paparazzi perderam espaço porque não precisamos mais de pessoas fotografando e bisbilhotando a nossa vida: nós seremos os primeiros a postar e publicar.
A revelação animalesca no final pode ser compreendida como uma metáfora para a perda da identidade e transformação que a devassa da privacidade acarreta no indivíduo, ainda que possa parecer uma saída pouco sólida para resolver a narrativa.
O pavor existencial típico da série remanesce ali, mesmo que a licantropia do episódio tumultue a nossa atenção. O recurso animalesco é uma forma de evidenciar que a mutilação da privacidade nos descaracteriza enquanto seres humanos, deformando um direito da personalidade essencial para o desenvolvimento de qualquer pessoa.
Nem mesmo a transformação humana em um bicho foi capaz de frear o instinto ganancioso e intrusivo dos paparazzi que, em algum ponto, somos todos nós. Na cena final, Mazey retorna à forma humana – absolutamente ensanguentada – e pede que Bo a mate. Bo entrega a arma e Mazey a aponta para a própria cabeça; enquanto Bo aponta a câmera para fotografar. O disparo do flash equivale ao disparo da arma, em sua potência e nocividade.
Mazey Day é um episódio que divide águas: a transição entre o Black Mirror para a fase Red Mirror e a divisão entre o fandom que gostou e odiou. Entre erros e acertos, cabe-nos agora aguardar os frutos dessa divisão.
REFERÊNCIAS