Loch Henry é o segundo episódio da nova temporada de Black Mirror. O episódio se inicia com o casal Davis (Samuel Blenkin) e Pia (Myha’la Herrold) chegando à casa da mãe de Davis, Janet (Monica Dolan), na pitoresca cidade escocesa Loch Henry.
“Coisinha linda que você capturou”. É o que diz Janet, no áudio original, em inglês, ao conhecer a nova namorada do filho (A Netflix traduziu para “Arranjou uma gracinha”).
Em tom de desconforto, ela pergunta para Pia, uma jovem negra: “Você cresceu na América?”, expondo o racismo estrutural tão presente em vilarejos espalhados pela Europa.
Davis e Pia são estudantes de cinema que pretendem fazer um documentário sobre um homem que protege ovos raros contra ladrões, o que eles chamam de um “justiceiro” que resiste à “mercantilização da natureza”.
A fotografia do episódio é escura e traz uma sensação de enclausuramento, indiciando o que Pia sente durante a sua estadia na casa de Davis. O episódio também consegue transmitir uma aura de tédio, inclusive porque não há acesso à internet na casa.

No início do episódio, Davis comenta que o campo pode ser perigoso e que “nem tudo é o que parece”. E é esse tédio que também a motiva a tentar desenvolver um filme com um conteúdo mais instigante do que a história de um homem que protege ovos raros.
Pia logo descobre que a cidade escocesa quase deserta era o lar de um serial killer chamado Iain Adair, que sequestrava e torturava vítimas. Em 1997, o criminoso sequestrou um casal de turistas que teria ido passar uma semana na cidade. Então, Pia decide que essa é a oportunidade de fazer um filme “que as pessoas realmente queiram assistir”. E esses crimes teriam sido descobertos pelo pai de Davis, um policial local que teria sido, inclusive, baleado por Adair.
Na época da ocorrência dos crimes, houve um esforço momentâneo para localizar os turistas sequestrados, inclusive com atenção da mídia nacional. Contudo, a atenção da imprensa logo se esvaiu após a morte da princesa Diana, que ofereceu manchetes mais chamativas. Iain Adair matou os próprios pais e se suicidou em seguida.
Charlie Brooker, criador da série, se denomina um fã de documentários sobre crimes reais. E o autor reconhece que a forma como lidamos com os true crimes mudou. Disse, inclusive, que após assistir um desses documentários, deparou-se consigo pesquisando no Google sobre a cidade de ocorrência do crime e checando se era um destino turístico.
Um ponto interessante é que o episódio descreve que, na década de 1990, os assassinatos espantaram o turismo da região. Entretanto, atualmente, os lugares que são palco de crimes geralmente atraem turistas.
No episódio, Davis se mostra angustiado com a ideia de explorar o trauma de sua cidade, embora Pia e seu amigo Stuart (Daniel Portman) – um barman que faz piadas sobre pronomes e diversidade – estejam animados, especialmente com a expectativa de que o filme revitalize a economia local.
O casal começa a acessar arquivos antigos, usar drones para filmar a cidade e visitam até mesmo a antiga casa do serial killer. Isso porque os patrocinadores querem algo “inédito, inexplorado” para que o filme possa ter espaço nas plataformas. Nesse contexto, o episódio reflete sobre os limites da privacidade: até que ponto podemos ir para conseguir aquele furo de notícia?
No Brasil, em 2022, uma atriz apresentou queixa-crime de difamação, calúnia e injúria contra um jornalista, uma apresentadora e um youtuber. Na oportunidade, a atriz alegou que os réus inventaram minúcias mentirosas e divulgaram indevidamente uma situação onde ela teria sido estuprada, ato violento do qual resultou uma gravidez e a entrega do bebê para adoção.
Após expor a violência, o jornalista foi atacado na internet, não tendo uma boa recepção acerca do “furo de notícia”, o que demonstra que nem sempre o público compactua com a obtenção de informações íntimas a qualquer custo. A atriz foi revitimizada e alegou ter se sentido humilhada com a devassa de sua intimidade.
No episódio de Black Mirror, a recepção do documentário pelos habitantes da cidade não é unânime. O pai de Stuart, Sr. Richard King, se mostra incomodado com a realização do filme e diz que “não deviam fazer filmes sobre isso”. Nesse ponto, o episódio tenciona reflexões sobre as fronteiras da liberdade de expressão: tudo, afinal, é “narratizável” ou existe um núcleo de temas que não deve ser comentado? Existem maneiras éticas de narrar uma história? Vale a pena rememorar traumas de vítimas reais? Há suporte psicológico para os envolvidos?

Janet, por outro lado, diz que “todos precisam saber o que aconteceu”, em um tom de que a exibição do filme seria uma manifestação de justiça. Esse argumento é usualmente suscitado para afastar o direito ao esquecimento em casos concretos, ponderando-se que alguns fatos históricos são tão nocivos que precisam sempre ser lembrados para que a sociedade não repita os mesmos erros.
Esse argumento foi levantado, inclusive, pelo Supremo Tribunal Federal, no Caso Aída Curi (RE nº 1.010.606), oportunidade em que a Corte, por maioria de votos, fixou tese pela incompatibilidade do direito ao esquecimento com a Constituição Federal.
Ao mesmo tempo, contudo, em alguns casos esse sentimento de justiça se confunde com vingança. As vítimas envolvidas em crimes reais, não raro, ficam traumatizadas com a história. O público, contudo, tende a se sentir confortável em assistir esses eventos narrados na mídia.
Em continuidade, a questão tecnológica, nesse episódio, é mais sutil. Vem como um pano de fundo para o contexto midiático que se desenha. A temporada foi, inclusive, criticada por alguns espectadores que consideraram que o episódio não trouxe a essência de Black Mirror, incluindo a cantora Anitta, que disse que a série não é mais como antes e que agora é um thriller aleatório com histórias bobas e sem propósito.
Nesse ponto, o próprio Charlie Brooker reconhece que quis fazer algo diferente nessa temporada, para que Black Mirror não fosse sempre uma série sobre alguém que está franzindo a testa para um iPhone.
A crítica de que Black Mirror não é mais a mesma é compreensível, mas também é reducionista. Isso porque a série não trata, necessariamente, sobre sociedades futuristas distópicas. Em realidade, seu objetivo é retratar a interação entre a sociedade, as tecnologias e seus impactos comportamentais, notadamente no que tange aos excessos, a dependência e o uso indevido desses mecanismos.
Loch Henry, portanto, aborda o fetiche sobre as tragédias dos crimes reais, retratando um cenário perturbador da relação entre a sociedade, as tecnologias modernas e as novas formas de mídia.
O episódio ironiza a Nefflix e seus usuários, especialmente porque em um dos diálogos Stuart questiona o casal sobre o nome de um filme de true crime da plataforma e Pia responde que ele “teria que ser mais específico” para que ela pudesse lembrar o título, indicando a proliferação desse gênero, que torna difícil saber até de qual história se trata.
No decorrer do episódio, Pia descobre que, na verdade, os pais de Davis também eram autores dos sequestros e torturas comandados por Iain Adair. Enquanto revirava os arquivos e vídeos sobre o crime, encontrou vídeos filmados pelo trio durante as sessões de tortura. Além do fetiche sádico, também havia um fetiche voyeurista pela gravação das sessões, inclusive com fotos polaroid (durante o episódio Janet mente dizendo que não está acostumada com câmeras).
Nos vídeos, Janet usava uma máscara de carnaval, que esteve o tempo todo exposta como um troféu na parede da casa. Pia foge da casa de Davis, acaba se acidentando em um lago e morre. A mãe de Davis se suicida e deixa todos os arquivos disponíveis para o filho usar no filme.
Davis, então, utiliza todos os arquivos e lança o seu documentário pela Streamberry (a mesma plataforma de streaming do episódio “Joan é péssima”), expondo a verdade sobre o crime. Esse documentário é premiado e, durante a premiação, Davis é informado de que já estão desenvolvendo outro filme sobre a história deles, inclusive buscando uma atriz para interpretar Pia.

Mais uma vez a série aborda o frenesi pela criação de conteúdo, dialogando com o primeiro episódio, “Joan é péssima”. Na verdade, trata-se de um combo de episódios que discutem a relação do comportamento social, da mídia e da velocidade imposta pelas plataformas. Loch Henry satiriza o circo que é criado ao redor de casos trágicos.
Nesse ponto, compete sublinhar o caso “A mulher da casa abandonada”, um podcast que investigou a vida de uma mulher residente em uma mansão no bairro de Higienopólis, São Paulo, descobrindo que a mulher escondia a acusação de ter cometido, vinte anos atrás, o crime de redução à condição análoga à de escravo com uma empregada doméstica.
Criou-se um circo em frente à mansão onde a mulher residia, com pessoas tirando fotos, fazendo lives, ativistas ambientais correndo com os animais domésticos, carros de polícia e coros de populares com palavras de baixo calão. A narrativa claramente saiu do controle. Nesse cenário, Loch Henry se preocupa em estruturar um contexto que aborda o comportamento social e da indústria de entretenimento em face de tragédias criminosas.
O episódio traz os arcos dos personagens que se dedicam a desenvolver o documentário e, ao mesmo tempo, traça paralelos com o contexto real de lançamento de filmes sobre true crimes. Também se chama atenção para a natureza sensacionalista dos programas de crimes reais, incluindo o uso narrativo de táticas criadas para prender os espectadores, muitas vezes descartando limites éticos para a obtenção de informações.
Trata, ainda, as consequências de consumir obsessivamente conteúdos que entretêm enquanto exploram a tragédia de outra pessoa. A dor do outro, na audiência, serve como um entretenimento barato.
Recentemente, por exemplo, o programa Linha Direta trouxe o caso de uma adolescente assassinada pelo namorado em um longo sequestro, à época televisionado por diversos órgãos de imprensa. A cunhada da vítima, contudo, se manifestou no sentido de que os familiares foram compelidos a reviver toda a dor dessa memória enquanto a emissora trazia à tona os piores momentos da vida de alguém.
Fica a reflexão: a audiência nos torna cruéis ou o consumo desse conteúdo é importante para que fatos históricos não se repitam?
No dia da premiação, o bar de Stuart volta a ficar cheio, com uma multidão usando a máscara de Janet e torcendo pela vitória do documentário. O episódio se encerra com Davis sozinho em seu quarto de hotel, encarando friamente a sua máscara de premiação, mostrando o preço psicológico de toda a trama e, talvez, lembrando da sua proposta original de desenvolver um filme sobre o justiceiro que protegia a natureza.
No fim das contas, seria melhor ter feito aquele filme?
REFERÊNCIAS
Gabriela Buarque é Advogada e pesquisadora. Mestra em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Coordenadora do GT de inteligência artificial e novas tecnologias no Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN) e Secretária-Geral da Comissão de Inovação, Tecnologia e Proteção de Dados da OAB/AL.